Entrevista com Evelyn Glennie
Em um concerto da Orquestra Filarmônica de Minas Gerais, conhecemos o trabalho de Evelyn Glennie, premiada percussionista internacional que se deparou com a perda auditiva profunda ainda na infância. Conversamos com Evelyn posteriormente e o que apresentamos a seguir é um relato inspirador, sensível e revigorante. Uma lição de vida para todos.
Ela é uma profissional da música, uma das percussionistas mais famosas do mundo. Já ganhou prêmios importantes como o Polar Music Prize e teve sua atuação social reconhecida até mesmo pelas autoridades britânicas. A escocesa Evelyn Glennie perdeu a audição aos oito anos, mas isso não foi capaz de afastá-la de seu grande sonho: trabalhar e viver a música. Aos 15 anos, ela decidiu que entraria para a Royal Academy of Music. De lá para cá, podemos afirmar que uma nova forma de lidar com a surdez surgia ali. A seguir, você verá a entrevista de Evelyn Glennie para a equipe do eauriz, em que ela fala sobre sua trajetória, conta como foi mudar a forma de perceber o mundo e ressalta a importância do apoio da família, da estruturação da escola e da sociedade para a integração das pessoas com surdez. E mais: a percursionista apresenta uma nova forma de ouvir, que vem de si mesmo, muito além dos sons.
eauriz: Quando e como foi o diagnóstico de surdez?
Evelyn: Eu tive caxumba aos seis anos de idade, o que pode ter contribuído para minha perda auditiva gradual. No entanto, notei problemas significativos e visíveis a partir dos oito anos, devido à deterioração dos nervos. Comecei a usar aparelhos auditivos a partir dos 10 anos, como o sistema fm, usado por mim e por professores na escola.
eauriz: Houve dificuldades para entrar no mundo da música no começo?
Evelyn: Eu fui para uma escola que colocava os alunos com outros de habilidades ou necessidades similares e se preocupava com a questão da inclusão. A escola tinha uma atitude muito boa em aceitar cada criança em todas as atividades, independentemente das circunstâncias. Isso resultou no meu destaque na música, pois tive a oportunidade de participar ao máximo de tudo que se referia ao assunto e estava cercada de pessoas, funcionários e alunos que acreditavam que todos ali eram bons em alguma coisa.
Aos 15 anos decidi que queria me tornar uma música profissional e ser uma percussionista solo. A “Royal Academy of Music”, em Londres, nunca havia aceitado uma pessoa com deficiência auditiva antes. Foi desafiador para eles me aceitarem devido à minha perda auditiva. Eles estavam preocupados que ninguém me contratasse como música profissional por ser surda. Além disso, a instituição não acreditava que seria possível criar uma carreira como percussionista solo. Eu estava tão determinada e obstinada que não haveria dúvida de que eu daria o meu melhor. Eu não ia permitir que outros ditassem minha vida.
eauriz: Conte-nos um pouco sobre sua jornada de reabilitação auditiva.
Evelyn: Meus pais e escola me apoiaram muito. Eles fizeram com que tudo parecesse o mais normal possível. A instituição de ensino fornecia os meios para que eu tivesse acesso ao Sistema FM, que me tornava capaz de escutar os professores falar ao se movimentarem pela sala de aula. Nesse período, eu e as outras crianças com deficiência auditiva tivemos acesso a um professor peripatético (que ensina passeando, como Aristóteles fazia), que nos ajudou com o trabalho escolar e quaisquer problemas emocionais, bem como com a fala, embora, no meu caso, essa não fosse a maior necessidade.
Ele também teve grande participação na escolha de nossas carreiras e contatos, como, por exemplo, me apresentar ao “The Beethoven Fund for DeafChildren” (Fundo Beethoven para Crianças Surdas) responsável por me levar a muitos outros contatos e situações.
eauriz: Como e quando você percebeu que escutar era diferente de ouvir?
Evelyn: Quando iniciei a percussão a partir dos 12 anos, eu me sentia frustrada por escutar o som sem conseguir decifrá-lo com clareza. Era como se houvesse uma parede, uma barreira. Foi neste momento que minha professora de percussão pediu que eu retirasse os aparelhos auditivos e me concentrasse naquilo que o corpo sentia enquanto eu tocava. Descobri que sons baixos eram sentidos na parte inferior do meu corpo; sons altos na parte superior.
Essa foi uma revelação, pois tive que desacelerar o corpo e a mente para reconhecer o começo, meio e fim de cada som, em vez do impacto inicial. Isso me fez perceber que a audição é uma condição médica, ao passo que ouvir é algo que todos podemos decidir em nos envolver, independente da capacidade dos nossos ouvidos.
eauriz: Como é o seu trabalho com músicos e o público por meio do “Teach the World to Listen”?
Evelyn: É importante deixar claro que minha missão de “ensinar o mundo a ouvir” é para todas as pessoas, não apenas músicos. A maioria dos desafios do mundo tem a ver com a escuta ou a falta dela. Eu estou basicamente pedindo às pessoas que estejam cientes de que ouvir não é apenas sobre som, mas sobre estar presente e se conectar com outros indivíduos e o ambiente. É sobre foco, concentração e empatia. A escuta não precisa ter nenhum som conectado a ela. Ouvir tem que começar conectando-se a nós mesmos. No momento, estou envolvida com uma organização chamada “Memory Bridge”, responsável por criar uma ponte para as pessoas com demência, para que elas saibam do seu valor, seus sentimentos, mesmo que estejam em um quadro clínico complicado. Recebi as maiores lições sobre ouvir quando encontrei pessoas com demência, na medida em que notei uma diferença ao tocar. Ser paciente e presente são as chaves para nos conectar conosco e com os outros.
eauriz: No discurso do TED, você diz que o som é “nosso remédio diário”. Como você leva essa mensagem com o projeto “Teach the World to Listen” (Ensine o Mundo a Escutar)?
Evelyn: O som está ao nosso redor – alguns deles podemos controlar e outros não. Peço às pessoas que pensem em seu mundo sonoro da mesma maneira que pensam em relação à comida. Embora nós vejamos a comida todos os dias de nossa vida em alguma forma ou formato, não sentimos como se tivéssemos que comer cada vez que a vemos. De alguma forma, com o som, parece que digerimos muito mais do que precisamos ou é bom para nós. Pensar no nosso ambiente sonoro em casa e no trabalho é importante. Dando a nós mesmos um som ‘limpo de primavera’ pode ser uma maneira de nos livrarmos ou reduzirmos a quantidade de som a que estamos expostos. Qual é o som da sua cozinha, sala de estar e assim por diante? Quantos sons cosmeticamente melhorados você digere? Qual é a frequência do som a que você está exposto? Você tem uma dieta de frequência equilibrada? Isso pode ser mais variado? Você tem de explorar sua própria situação para estar ciente de como sua dieta do som pode ser mais controlada, o que pode afetar o seu humor geral, relacionamentos e produtividade.
eauriz: Ainda sobre o discurso do TED, você diz que suas referências musicais são tiradas dos mais diferentes ambientes. Conte-nos mais sobre essas referências e como elas são importantes para o seu trabalho hoje.
Evelyn: Fui criada em uma fazenda no nordeste da Escócia. Eu estava acostumada a lidar com os sons da natureza e sons artificiais das máquinas agrícolas. Também sabia sobre paciência, pois não se pode forçar ou apressar a natureza. Esse tipo de educação nos faz perceber pequenas coisas que fazem uma grande diferença. São as pequenas coisas aparentemente insignificantes ou sem importância que, se prestadas atenção e ouvidas, fazem a maior diferença. “Prestar atenção ao som” é sobre isso. É a abertura de todos os sentidos para se tornar o sexto sentido. Pode-se ouvir com os olhos, ouvir com o corpo.
eauriz: Você pode nos explicar como os especialistas em acústica estão se aproximando das pessoas com deficiência para criar ambientes que realmente reproduzem sons de qualidade?
Evelyn: Acredito que os acústicos estão percebendo que ouvir com o próprio corpo e não apenas com os ouvidos é crucial. No entanto, assim como não é simples encontrar uma jaqueta adequada para todos os extremos climáticos, é um desafio encontrar uma esfera apropriada para todos os gêneros musicais e combinações de instrumentos. A família de instrumentos de percussão se presta bem à experimentação de um ambiente devido aos extremos na faixa de frequência, dinâmica, toque, ressonância, timbre, ataque e assim por diante. Trabalhei de perto com o Russell Johnson, que era o acústico do “Symphony Hall de Birmingham”, na Inglaterra. Eu tive uma residência de uma semana onde Russell observou todos os meus concertos de recitais solo, percussão com orquestra de câmara, percussão com orquestra completa, percussão com coral e assim por diante. Deu-me uma paleta para observar e aprender e não somente de um ponto da orquestra.
eauriz: Existe alguma orientação ou sugestão de como realmente “ouvir” através do uso do corpo como uma câmara acústica, experimentando a jornada do som?
Evelyn: Não há método ou sistema, mas simplesmente prestando atenção. Não se sentirá a nota C sendo tocada na marimba na mesma parte do corpo toda vez, devido a vários fatores como o que está usando, a qualidade da barra de marimba, o tipo de martelo usado, a dinâmica, o tipo de madeira, a condição de ressonador, em que tipo de superfície a marimba está, qual o espaço ao redor da marimba, posição no palco e assim por diante. É importante não analisar mais, mas se acostumar com o corpo que está sendo usado como um grande ouvido para escutar o som. Pode-se tentar tirar os sapatos, segurar um balão ou pedaço de papel enquanto assiste TV e se acostumar com as vibrações, pulso, ênfase e inflexão que vêm através das mãos; sentindo a ressonância de sons baixos e anotando onde eles são sentidos; colocando sua mão em sua cozinha todos os dias para ver o que está ressoando e onde você está sentindo isso. Não é necessário ter acesso à música, mas você pode praticar com o que está ao seu redor em seu próprio ambiente. Como em tudo, praticar isso tornará você mais consciente para que você abra todos os seus sentidos.
eauriz: Quando você esteve no Brasil, divulgamos sua apresentação com a Orquestra Filarmônica de Minas Gerais. Recebemos pedidos de orientação sobre como uma pessoa surda poderia aprender a tocar um instrumento. O que você recomenda para pessoas com perda auditiva que desejam começar a aprender música?
Evelyn: Deve-se tentar evitar a categorização de que todos os surdos experimentam o mesmo. A surdez não é preto ou branco. Não é um caso de você poder ouvir ou não ouvir. Com a explosão dos implantes cocleares, a tecnologia, a internet, a importância de todas as formas de arte, apoio social e educacional, bem como o controle de nossas próprias trajetórias de vida pela curiosidade, percebemos que tudo pode estar aberto para nós e merecemos o direito de fazer parte do que sonhamos. O grande compositor Beethoven foi um exemplo perfeito de alguém que perdeu a audição, mas ele começou a morder o teclado do piano para sentir as vibrações nos dentes. Este foi um instinto natural para ele explorar. Ele não teve acesso a toda a tecnologia moderna que temos hoje – nada. Temos de deixar nossa mente nos ajudar a sermos curiosos e não sermos retidos pelo que os outros pensam ou sentem por meio da categorização. O corpo é um mecanismo incrível, mas a mente é o que impulsiona esse corpo.